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  • Foto do escritorAndré Cabral

Psicanálise e cinema: Filme "Divinas Divas"

Atualizado: 21 de fev. de 2021





Dirigido por Leandra Leal, Divinas Divas vem coroar o grandioso trabalho de oito artistas brasileiras. O documentário, lançado há pouco na cidade de Belo Horizonte, retoma a história de oito travestis e mostra-nos uma vida dividida entre o glamour dos palcos teatrais e o desamparo causado pelos pesados anos da ditadura militar. Porém, o filme acaba por surpreender o telespectador quando demonstra que, no período da repressão militar, não ocorreu o enclausuramento das divas. Ao contrário, era-lhes permitido que se apresentassem nos teatros do Rio de Janeiro e de São Paulo.


Na ditadura, grande parte dos artistas foi perseguida e exilada, de modo que uma das poucas formas de diversão da sociedade carioca se concentrou nos shows noturnos do teatro Rival, casa que, naquele período, foi administrada por Américo Leal, avô de Leandra Leal. Evidentemente, nem todos os travestis tiveram o mesmo percurso das divas, mas o fato é que o documentário aponta para certa impossibilidade de que fosse encontrada a mesma abertura artística nos dias de hoje.


Enquanto na repressão militar as divinas ocupavam os palcos com apresentações que se estendiam das terças aos domingos - chegando a três encenações diárias - na atualidade, os travestis ocupam quase que exclusivamente as avenidas e as ruas das metrópoles brasileiras. Não tenho estatísticas que possam mensurar e assegurar o que afirmo, mas acompanhando os depoimentos do documentário de Leandra, e outros trabalhos, a exemplo da maravilhosa peça de Silvero Pereira, intitulada “BR-Trans”, permito-me, no mínimo, problematizar sobre o assunto.


Faz-se necessário dizer que não pretendo discutir aqui o ofício do travesti. O objetivo é interrogar algumas das razões que teriam permitido que os travestis conseguissem se apresentar nos palcos do teatro Rival, mesmo frente aos pesados anos da ditadura. Na minha concepção, esta abertura não poderia ocorrer sem que o humor entrasse também em cena. Evidentemente, devemos lutar por uma sociedade em que todos tenham respeito, independentemente da presença ou ausência do humor. Todavia, vamos nos atentar para a relação peculiar estabelecida entre a censura militar e as divas.


Retomo uma passagem que pode ser importante para compreendermos como foi possível driblar a ditadura militar, ainda que o próprio corpo do travesti já representasse, em si, uma problematização à censura da época (e, porque não dizer, também de hoje). Bastante relevante é o episódio em que a mãe de Leandra, Ângela Leal, substitui uma das divas, fazendo-se passar por travesti. Ao final do show, há o relato de que a polícia teria entrado no camarim e interrogado quem teria sido aquele “viado mais desbocado e feminino”. Diante da repressão militar, Ângela Leal teve de comprovar que era, verdadeiramente, uma mulher, a fim de que não fosse presa.


O que percebo, e aqui saliento, é o fato de que “o viado desbocado” não vem como aquele que descortina que um homem possa vir a ser feminino tal como a mulher, o que, evidentemente, seria alvo de repressão, conforme demonstrado no documentário. Afinal, como nos descreve as divas, para quem nasce João não é fácil se tornar Maria, embora não seja algo impossível. O que temos neste “viado desbocado e feminino” não é um ator que finge ser uma mulher, conservando a verdadeira essência do desejo para além da dimensão da falsidade de um travesti, mas uma atriz que, ao não ser reconhecida como mulher, esvazia o feminino de toda condição a priori sugerida pela cultura.


Ao fingir que fingi ser uma mulher, Ângela produz um engodo no qual os militares esperavam encontrar a causa máxima do desejo. Ou seja, ao confundir uma mulher com o travesti, o que se descortina é que não há nada para se descortinar. É aí que o desbocado “abre o verbo” e decapita o cetro empunhado pelos militares. E como é possível que tal queda passe despercebida aos olhos da censura? Ainda que a ditadura viesse suprimir o sexual em sua dimensão singular, a brevidade do dito “viado mais desbocado e feminino” permite que, frente ao horror produzido pelo esvaziamento da mulher, o soldadinho de chumbo se aproxime do feminino sem que a censura se sinta censurada por isso (afinal, o soldado não sabe o que realmente o encanta).


É aí que o chiste nos é importante. Um chiste diz o que tem que dizer, mas sempre em palavras poucas demais. Ele é o padre disfarçado que casa a todos os casais, mas ele dá preferência ao matrimônio de casais cuja união os parentes abominam. E não são poucos os “matrimônios” (em alguns casos com coronéis) relatados no documentário em que é possível observar a presença do desejo como avesso às identificações e aos ideais normativos da sociedade. O que pude perceber é que o documentário de Leandra capta o que há de mais importante e singular numa parceria amorosa.


Divinas Divas se aproxima da psicanálise na medida em que pressupõe que o desejo não se consome nos ideais estéticos, morais e normativos da sociedade. O desejo não é o que está num a priori biologizante ou representado por divisões binárias da linguagem, conforme vemos a exemplo dos gêneros ou de nomenclaturas que viriam enclausurar o sujeito entre heterossexualidade e homossexualidade. O desejo é o que permite capturar o soldado que não sabe, exatamente, o que o encanta naquele viado “tão” feminino.


E nos dias atuais, o que vemos no Brasil? Atualmente, os palcos são outros, mas a polícia se mostra tão ou mais perversa do que fora outrora. Nas ruas, os travestis não têm encontrado o enclausuramento, mas índices bem mais assustadores que aqueles sugeridos pela ditadura militar. Atualmente, a sociedade brasileira é aquela que mais mata suas futuras divas. E porque temos índices tão perversos e alarmantes? Cito Contardo Calligaris para dizer sobre duas hipóteses levantadas por ele, no texto “Minha covardia me dá vontade de agredir quem ousa viver ‘do seu jeito’”. Para Calligars, temos, por um lado, o bate-se num (ou mata-se um) travesti porque há o desejo reprimido de transar com ele, ou ser ele. Ou seja, bate-se para bater no próprio desejo inconfessado. E, por outro lado, numa segunda hipótese, porém não excludente, bate-se porque ele tem coragem de viver segundo o seu desejo, coragem essa que não tenho. Portanto, bato num travesti porque sou covarde e não tenho a coragem que eles têm.


Ora, o que problematizo a partir da hipótese de Calligaris e do documentário de Leandra, não é que não houvesse mortes e agressões na época da ditadura - já que eu nem teria dados para afirmar tal coisa -, mas dizer que o desejo, quando tratado pela via do chiste, mostra-se mais suportável para o sujeito. A meu ver, se a ditadura permitiu que os travestis se apresentassem todas as noites no teatro Rival, não podemos ignorar que o humor tenha sido essencial para que tal ditadura fosse driblada. O chiste permitiu que os travestis atravessassem os longos anos da ditadura bem debaixo das barbas dos “fami-litares”.

Evidentemente, este curto texto é apenas um passo em direção ao debate.





André Cabral é psicanalista e faz atendimento clínico na cidade de Uberlândia e Araguari. Atende adolescentes, adultos e idosos frente aos mais diversos sintomas e sofrimentos psíquicos. Trabalha, ainda, com atendimento a casais e apoio voltado para a “orientação profissional” de adolescentes. Atualmente é doutorando em estudos psicanalíticos pelo programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem interesse na interlocução entre psicanálise e cinema, literatura, teatro e política.


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